Governo Tarcísio beneficia desmatadores e famílias do agro com terras de SP
Governo Tarcísio beneficia desmatadores e famílias do agro com terras de SP
Juliana Sayuri e Adriana Ferraz
Do UOL, em São Paulo

Considerado um dos maiores desmatadores do país, AJJ, como é conhecido, está na lista de contemplados pelo governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), para adquirir 2.000 hectares de terras públicas no Pontal do Paranapanema, região historicamente marcada por conflitos agrários.

Até agora, mais de 47 mil hectares de terras foram autorizados para latifundiários por cerca de 10% do valor estimado.

Equivalente ao território de Porto Alegre, a área representa 70% dos 70 mil hectares das chamadas “terras devolutas” já negociados na região desde 2023, segundo levantamento inédito feito pelo UOL a partir de dados obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação).

Terras devolutas são terras públicas que nunca tiveram destinação específica, ainda que estejam irregularmente ocupadas (griladas).

Em São Paulo, uma lei aprovada em 2022 permite a venda dessas terras e autoriza descontos de até 90%. Até o fim de setembro, 146 pedidos de regularização foram aprovados.

O secretário de Agricultura Guilherme Piai (Republicanos) tem afirmado que 75% dos processos aprovados beneficiaram pequenos e médios produtores.

Os dados do secretário divergem das informações passadas pelo Itesp (Instituto de Terras de São Paulo), vinculado à própria secretaria via LAI, que foram analisadas pela reportagem.

Entre os beneficiados estão famílias de fazendeiros que grilaram milhares de hectares de terras.

O agronegócio é um dos redutos políticos de Tarcísio.

Governador Tarcísio de Freitas (à dir.) e o secretário Guilherme Piai em Presidente PrudenteImagem: Celio Messias/Governo do Estado de SP

Segundo o governo paulista, as áreas passíveis de regularização são ocupadas por produtores rurais que cumprem função social da propriedade e que, na maioria, possuem registros imobiliários há mais de cem anos.

“A lei não legitima práticas ilegais, mas reafirma direitos já consolidados, garantindo maior segurança jurídica em regiões historicamente marcadas por disputas e longos processos judiciais”, diz uma nota do governo a uma reportagem do UOL publicada em setembro.

Ao todo, o programa abrange 600 mil hectares de terras devolutas em diferentes regiões do estado.

Na média, o governo negocia o hectare por R$ 2.500, já considerando os descontos. No mercado, o valor mínimo é R$ 33,4 mil (1.236% superior), de acordo com mapeamento do Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária), considerado referência nacional.

Para o geógrafo Bernardo Mançano, professor da Unesp (Universidade Estadual Paulista), trata-se de uma “grilagem da grilagem”.

Grilagem é uma palavra que denota falsificação de documento público para validar a posse da terra. […] O governo Tarcísio está ‘grilando o grilo’. O primeiro ‘grilo’ foi a falsificação das escrituras, o segundo ‘grilo’ é vender as falsas escrituras com 90% de desconto para pessoas que participaram da grilagem. Bernardo Mançanoprofessor da Unes

Mançano diz que os clãs citados pela reportagem há décadas têm uma estratégia de fracionamento de fazendas, nomeando diferentes integrantes da família como titulares das terras para não configurar latifúndios.

A reportagem analisou dados obtidos via LAI e conferiu relações entre os requerentes, pessoas físicas e pessoas jurídicas, relacionadas diretamente a cada família.

O Itesp, vinculado à Secretaria de Agricultura, afirmou à reportagem que “a política pública é majoritariamente voltada à agricultura familiar e aos pequenos proprietários”.

“A regularização consolida ocupações históricas, não cria privilégios. Não existe possibilidade de favorecimento e fatos externos ao imóvel não constituem impedimento legal à regularização de propriedades consolidadas”, diz o instituto (leia a nota na íntegra).

O Itesp informa que o estado não nega regularização fundiária por autuações ambientais e por histórico pessoal.

Também afirma que não há impedimento para que integrantes de uma mesma família façam pedidos de regularização, pois há “antigas propriedades particionadas entre herdeiros há décadas”.

“Assim, não há ‘concentração artificial’ resultante do programa atual —trata-se de uma realidade histórica do território, devidamente controlada pelos limites legais”, diz.

Questionado mais uma vez sobre o perfil dos requerentes aprovados, o órgão reforçou “que não trabalha com categorização por sobrenomes ou por grupos familiares, societários ou econômicos, mas sim com parâmetros legais objetivos e uniformes para todos os requerentes, realizando a análise individual para cada solicitação” (leia a segunda nota na íntegra).

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Imagem: Arte/UOL

Autor de PL das terras devolutas é advogado de famílias do agro

A lei paulista é contestada no STF (Supremo Tribunal Federal) pelo PT desde 2022 e pela Abra (Associação Brasileira de Reforma Agrária) desde 2023.

A relatoria é da ministra Cármen Lúcia, que ainda não levou o assunto para discussão no tribunal.

Segundo análise dos metadados dos arquivos da Alesp (Assembleia Legislativa de São Paulo), o autor do projeto que originou uma das leis relacionadas às terras devolutas é o advogado Miguel Flora, que representa interessados que tiveram pedidos aprovados no Pontal do Paranapanema.

Entre eles está a família Catarino, a maior beneficiada da região, com 5.684 hectares. Sócia da AP Agropastoril e da Ourem Agropecuária, possui negócios no interior paulista e em Alto Garças (MT).

Maria Julia Mangas Catarino da Fonseca foi defendida por Miguel Flora em diversas ações, entre elas num inquérito civil do Ministério Público sobre desmatamento em área de reserva legal em uma fazenda no município de Teodoro Sampaio.

Flora também representou a família Viana. Sócia da Trondheim Agropecuária, também já foi alvo de ações ambientais do Ministério Público.

Procurado pelo UOL por email e por telefone do escritório, o advogado não retornou à reportagem.

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Imagem: Arte/UOL

Maior desmatador da Amazônia teve desconto de R$ 20,3 milhões

Levantamento feito pelo UOL no Diário Oficial do Estado mostra que a família de Antônio José Junqueira Vilela Filho, conhecido AJJ Vilela, obteve ao menos R$ 20,3 milhões em descontos para regularizar 2.000 hectares nas cidades de Sandovalina e Pirapozinho entre 2023 e 2024.

Em 2016, AJJ e a irmã Ana Luíza Junqueira Vilela foram presos pela Polícia Federal acusados comandar um esquema de desmatamento ilegal, trabalho escravo e grilagem de terras no interior do Pará que rendeu a maior multa já aplicada pelo Ibama: R$ 119 milhões.

De acordo com a Operação Rios Voadores, o grupo criminoso desmatou uma área de floresta equivalente à cidade de Belo Horizonte no município de Altamira (PA).

Em 2024, a Justiça do Pará aplicou mais uma multa a AJJ, desta vez de R$ 1,23 milhão por novos desmatamentos no estado. Ele também é alvo de dez embargos e mais de 15 autuações do Ibama.

O programa atendeu também a família Valle, da administradora Valle, com 2.800 hectares. Antenor Duarte do Valle foi um dos requerentes aprovados. Foi um dos indiciados pelo massacre de Corumbiara (RO) na década de 1990. Foi absolvido.

A lista inclui também a família Prata, da holding Pioneiros do Guaporé, com mais de 2.600 hectares de terras públicas.

Antenor Morais Prata foi autuado duas vezes pelo Ibama por desmatamento no município de Chupinguaia (RO), com multas de R$ 354 mil.

Henrique Duarte Prata, sócio da Pioneiros do Guaporé e presidente da Fundação Pio XII (instituição vinculada ao Hospital do Amor, também beneficiado com mil hectares de terras), foi autuado em Comodoro (MT), no fim de 2024, com multa de R$ 13 mil.

Francisco Jacintho, que adquiriu 2.423 hectares com desconto de 90% em Sandovalina, também já foi autuado pelo Ibama em Coxim (MS), com uma multa de R$ 4 milhões.

Aliados estão entre os beneficiados

Newton Durães Teixeira, presidente do Sicoob (Sistema de Cooperativas Financeiras do Brasil) Credivale, comprou 2.384 hectares em Presidente Bernardes. Ele foi um dos doadores de campanha de Piai para deputado federal, no fim de 2022.

A família Roque adquiriu quase mil hectares em Presidente Venceslau.

O pedido foi feito por Fernanda Gomes Roque, viúva de Roosevelt Roque, ex-vereador e ex-presidente da UDR (União Democrática Ruralista), organização que, na década de 1990, confrontava o MST.

Neusa Rainho e Manoel Rainho Júnior, filhos do ex-prefeito Manoel Rainho, de Presidente Venceslau, adquiriram terras em Rosana e Piquerobi.

Júnior é engenheiro agrônomo, administrador da fazenda da família e inspetor do Crea-SP (Conselho Regional de Engenharia e Agronomia de São Paulo).

No fim de 2024, ele recebeu o CAR (Cadastro Ambiental Rural) número 100 mil, durante uma cerimônia na SP Agro, no Palácio dos Bandeirantes.

Além do agro, há pedidos aprovados em nome de profissionais que não têm atividade rural, por exemplo, a médica Larissa Oberlaender Azenha Coelho e o fisioterapeuta Leonardo Kesrouani Lemos.

O UOL procurou os citados na reportagem.

O advogado da família Junqueira Vilela, Renato Lopes, diz os imóveis rurais têm matrícula imobiliária desde 1901 e “são imóveis particulares que gozam de fé pública, tendo recolhido todos os impostos inerentes a propriedade”.

Também afirma que a Operação Rios Voadores foi marcada por “ilegalidades, a denúncia de organização criminosa sequer foi recebida e o resto das acusações se arrastam pela Justiça sem nenhuma condenação e caminha para a absolvição total ante os abusos cometidos pela PF e MPF”.

Segundo a defesa, as multas ainda estão pendentes de julgamento.

Rainho diz que fez acordos para consolidar as propriedades da família.

“Estas áreas nunca foram questionadas judicialmente pelo Estado. Trata-se de propriedade privada. Assim, apesar de saber que o acordo realizado é mais vantajoso para o Estado, evitamos custos com advogados e a desvalorização da terra, em caso de ação judicial que possam ocorrer no futuro”, diz.

Rainho considera uma honra ter recebido o CAR diretamente de Tarcísio.

“Foi um momento único, uma alegria. Sentimos que foi um gesto simbólico de reconhecimento pelo esforço e dedicação, pois sempre cumprimos todas exigências da legislação”, acrescenta.

Antenor Duarte do Valle, Antenor Morais Prata, Antônio Viana, Henrique Duarte Prata, Larissa Oberlaender Azenha Coelho, Leonardo Kesrouani Lemos, Maria Julia Mangas Catarino da Fonseca e Newton Durães Teixeira não responderam.

A reportagem não conseguiu localizar Fernanda Gomes Roque e Francisco Jacintho. O espaço está aberto a manifestações.

 

Imagem: Crédito: Silvio Avila/ AFP

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