A presença de cenas de uso aberto de álcool e outras drogas na região central da cidade de São Paulo é resultado de decisões e políticas urbanas, e o tratamento do território como “Cracolândia” funcionou como licença para que ali fossem usadas medidas extralegais, afirmou a arquiteta e urbanista Raquel Rolnik à Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) constituída, na Assembleia Legislativa, para investigar a denominada epidemia do crack no Estado de São Paulo.
A convite dos deputados Simão Pedro e Eduardo Suplicy, Raquel Rolnik participou nesta quarta-feira, 13/12, da reunião da CPI, esclarecendo, ao se apresentar, que as reflexões que traria aos parlamentares são fruto do trabalho de pesquisa e acompanhamento que acontece na região do bairro dos Campos Elíseos, na capital paulista, desde 2017, realizado pelo Laboratório Espaço Público e Direito à Cidade (LabCidade) da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP), do qual é coordenadora.
Para a pesquisadora, uma política para a região é possível e necessária, e convidou a todos que conhecessem o projeto Campos Elíseos Vivo, iniciativa do Fórum Aberto Mundaréu da Luz, constituído em maio de 2017, por laboratórios ligados a universidades, em conjunto com grupos de saúde mental, coletivos culturais, ongs e lideranças da região. O documento apresenta os resultados de um processo amplo, ainda em curso, que tem sido construído coletivamente a partir da escuta das necessidades e dos desejos da população local do bairro Campos Elíseos.
Transformações do território
Desde os anos 1990, há um debate em torno de uma “revitalização” do centro da cidade de São Paulo, distritos da Sé e da República, mas em particular da região formada pelos bairros dos Campos Elíseos, da Santa Efigênia e da Luz. Entende-se que esse processo apresentou três equívocos básicos.
O primeiro diz respeito ao termo “revitalização”, que indica que não há mais vida e, assim, a política partiu do pressuposto de que não havia homens, mulheres, crianças vivendo no território.
O centro de São Paulo, que se caracterizava por uma população de alta renda no início do século XX, vai se popularizando, sobretudo, com a instalação da rodoviária de São Paulo, conta a pesquisadora. Com populações provisórias, de migrantes, de recém-chegados, a região transformou-se num local de oferta de moradia, de aluguel, relativamente acessível, com pensões, sublocação de imóveis, aluguel de quartos e até mesmo de cama por hora.
Quando deixa de ser lugar de residência, consumo e cultura das classes médias, o centro da cidade passa a ser um território popular. “O percentual de negras e negros nas áreas centrais é quase igual ao percentual nas periferias mais distantes”, lembrou Raquel Rolnik. “Exatamente por ser um território popular, ele foi gradativamente abandonado pelas políticas de investimento, com a ideia de que ele deveria sofrer uma transformação para voltar a atrair as classes médias e altas, que abandonaram o centro da cidade.”
Numa primeira estratégia rumo a esse objetivo, o governo do Estado de São Paulo, nos anos 1990, instala na região grandes equipamentos culturais, como a Pinacoteca e a Sala São Paulo. A segunda estratégia foi desapropriar, interditar e demolir imóveis. Depois do projeto Nova Luz, do prefeito Gilberto Kassab, interrompido pela Justiça, em 2013, vieram as Parcerias Público-Privadas (PPPs) que construíram moradias visando atrair quem trabalhava no centro, mas que, segundo Raquel Rolnik, não atenderam “nenhum dos moradores de pensões, em cortiços e em situação precária”.
Detenções em massa
Também falaram à CPI nesta quarta-feira, Leandro Ramalho, da Inspetoria de Operações Especiais da Guarda Civil Municipal que atua na cena aberta de uso, e Fernanda Penteado Balera, da Defensoria Pública do Estado de São Paulo.
Segundo Leandro Ramalho, a missão da Inspetoria de Operações Especiais desde 2021 é fazer uso de maior uso de material não letal na atuação frente a cenas de uso aberto de álcool e outras drogas. Perguntado sobre as denúncias feitas com base em vídeos, captados por câmeras colocadas por entidades que atuam na Cracolândia, que flagraram abusos cometidos por agentes da Guarda Civil Metropolitana e da Polícia Militar do Estado de São Paulo contra a população que vive na região, o inspetor informou que os inquéritos decorrentes dessas denúncias foram arquivados por falta de provas.
Fernanda Penteado Balera apresentou os resultados de uma estudo feito pelo Núcleo Especializado de Cidadania e Direitos Humanos da Defensoria Pública de São Paulo, que analisou dados de detenções realizadas pela Polícia Civil do Estado de São Paulo no âmbito de uma das fases da Operação Caronte, iniciada em junho de 2021. O nome da operação faz referência à figura mitológica grega responsável por transportar as almas das pessoas mortas.
Com o objetivo declarado de “coibir de forma intransigível ao consumo explícito de drogas nas vias públicas, com especial atenção ao Crack”, a fase denominada Cachimbo aconteceu entre setembro e novembro de 2022 e realizou 871 prisões arbitrárias na região.
Segundo o documento Operação Cachimbo: relatório das detenções em massa realizadas na Cracolândia, houve uma massificação das detenções, no sentido quantitativo, pela quantidade de pessoas presas conjuntamente e registradas sob um único procedimento judicial; e no sentido qualitativo, dada a padronização com que foram registrados os acontecimentos e as informações. Na maioria dos processos instaurados, “a solução adotada pelo Poder Judiciário foi o trancamento do termo circunstanciado ou o arquivamento do procedimento investigatório, o que já demonstra que as detenções efetuadas se deram em contextos de flagrante ilegalidade”.
Durante a VI Fase da Operação Caronte, 139 pessoas internadas pelo Programa Redenção, da prefeitura de São Paulo. Fernanda Balera destacou o desmonte dos serviços de saúde e assistência social na região e o impacto que a violência policial tem sobre os trabalhadores que atuam no atendimento socioassistencial no território da Cracolândia. Segundo esses trabalhadores, “a urgência da resistência à violência policial elimina todas as outras coisas que a gente pode fazer”.
O relatório final da CPI da Epidemia do Crack será apreciado em reunião que acontece nesta quinta-feira, 14/12, às 13h, no plenário Dom Pedro I.
Fotos: Carol Jacob/Alesp
