Central de dossiês
Agentes
infiltrados em movimentos sociais, centenas de dossiês sobre partidos
políticos, relatórios minuciosos com os discursos de oradores em eventos
políticos e sindicais. Tudo executado por policiais, a mando de seus chefes.
Estas atividades, típicas da truculenta ditadura militar brasileira, ocorreram
no Estado de São Paulo em plena democracia, há pouco mais de dez anos. Cerca de
50 mil documentos, até então secretos e que agora estão disponíveis no Arquivo
Público do Estado, mostram como os quatro governadores paulistas, eleitos pelas
urnas entre 1983 e 1999, serviram-se de espiões pagos com o dinheiro dos
contribuintes para monitorar opositores. Amparados e estimulados por seus
superiores, funcionários do Departamento de Comunicação Social (DCS) da Polícia
Civil realizavam a espionagem estatal. Até o tucano Mário Covas, um dos maiores
opositores do regime militar e ele mesmo vítima de seus métodos autoritários,
manteve a arapongagem durante todo o seu primeiro mandato e por um período de
sua segunda gestão. Entre os alvos preferidos na administração do PSDB aparecem
o PT e a Central Única dos Trabalhadores (CUT), organização sindical fundada
pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Há dezenas de dossiês com
informações sobre as duas entidades e seus principais expoentes. Já as
investigações a respeito dos tucanos e seus aliados foram suspensas a partir de
1995, quando Covas assumiu o governo de São Paulo.
A
classificação dos documentos, que vieram à tona em uma reportagem publicada
pelo portal IG, deixa claro como a polícia a serviço dos políticos paulistas se
utilizou exatamente das mesmas práticas que fizeram a fama dos órgãos de
repressão militar. As informações coletadas eram organizadas em fichas por
códigos alfanuméricos, como no temido Departamento de Ordem Política e Social
(Dops), onde opositores do golpe de 1964 foram alvo de interrogatórios e
sessões de tortura. Tarimbados profissionais do extinto Dops integravam também
a equipe do Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil. Delegados de
cidades paulistas foram orientados a reportar qualquer acontecimento
político-social ao DCS. Codinomes e infiltrações em assembleias grevistas
também faziam parte da rotina dos agentes, que relatavam os acontecimentos aos
superiores. Em um dos dossiês sobre a CUT, os investigadores autodenominados
Gama 30 e Gama 38 relatam a tentativa frustrada de participar de uma assembleia
dos funcionários da Fundação Florestal do Estado de São Paulo em 13 de março de
1995. Dizem que cumpriram a determinação, mas foram barrados por uma moça na
portaria. Os crachás de empregados temporários de que dispunham os agentes
trapalhões não eram aceitos na entrada.
Os
agentes eram enviados para acompanhar até eventos públicos. Em cumprimento à
determinação de V.S., assistimos no local e constatamos a presença de
aproximadamente 250 pessoas juntamente com um carro de som e de uma perua
Kombi, relatam os agentes Gama 45 e Gama 55 sobre manifestação da CUT
realizada no dia 10 de março de 1995, na Praça da Sé, em São Paulo. No
documento ainda identificam os proprietários dos veículos pelas placas e fazem
questão de mencionar que o hoje deputado Vicente Paulo da Silva (PT-SP), o
Vicentinho, presidente na época da entidade sindical, discursou no evento. Essa
seria apenas uma das diversas arapongagens contra a Central Única dos
Trabalhadores na gestão Covas.
Em algumas tentativas
os arapongas paulistas pareciam conseguir antecipar alguma coisa. A CUT e
entidades alinhadas estão articulando para os dias 06, 07 ou 08/03/99, Praça da
Sé, um grande Ato Público contra o desemprego e arrocho salarial.
Distribuirão no ato, entre outros, o panfleto Bloco do Bode, que segue
abaixo, informa o documento sem assinatura ou destinatário. Em seguida, junto
de recortes de jornal confirmando a manifestação, há uma lista com 15 policiais
designados para ficar de plantão. Procurado pela reportagem de ISTOÉ,
Vicentinho mostrou-se perplexo com a espionagem: Na época do Covas, eles ainda
faziam isso? Achei que tinha parado na ditadura. É inimaginável, diz o
ex-líder sindical. É um absurdo gastar dinheiro público para violar a
privacidade das pessoas, ainda mais com interesse político. Graças a Deus nada
disso interrompeu a consolidação da democracia, complementa.
Em tempos tucanos, o
Partido dos Trabalhadores (PT) virou o principal alvo. Há pilhas e pilhas de
documentos produzidos pelo Departamento de Comunicação Social (DCS) a respeito
da sigla. Convenções, disputas internas, gestões municipais do partido e
informações das principais lideranças e dos possíveis candidatos a eleições
majoritárias eram coletadas pela polícia política em plena década de 90. Os
nomes do ex-presidente Lula e da hoje senadora Marta Suplicy (PT-SP), que
disputaria com Covas o primeiro turno da corrida pelo governo de São Paulo em
1998, aparecem constantemente nos dossiês PT. Já para Antônio Palocci,
prefeito de Ribeirão Preto no período, criaram um dossiê exclusivo. Na pasta, o
ex-ministro é apresentado como uma figura em ascensão no partido e favorável a
privatizações.
Segundo o presidente
da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) do Rio de Janeiro, Wadih Damou, as
atividades realizadas pelo Departamento de Comunicação Social da Polícia Civil
do Estado de São Paulo são ilegais, violam a Constituição e devem ser
investigadas com extremo rigor. Causa mais repulsa ainda que tenham sido
feitas em um período democrático. Nunca vi nada parecido. Fico preocupado e
penso se isso não continua acontecendo. O DCS, pelo menos, acabou extinto em
24 de novembro de 1999.
